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28 de junho de 2011

...Monstro nenhum...

“No dia seguinte, enquanto preparava meu chá preto para o café da manhã, Hassan me contou que tinha tido um sonho. — Estávamos no lago Ghargha — disse ele. — Você, eu, o pai, agha sahib, Rahim Khan e mais um monte de gente. Fazia sol, a temperatura estava ótima e o lago estava límpido como um espelho. Mas ninguém estava nadando porque andavam dizendo que um monstro tinha vindo para o lago. Estava escondido lá no fundo, só operando...
Encheu a minha xícara, acrescentou o açúcar e soprou algumas vezes. Pôs então o chá diante de mim.
— Era por isso que todos estavam com medo de entrar na água. De repente, você descalçou os sapatos, Amir agha, e tirou a camisa.
"Não tem monstro nenhum aí", disse. "Vou mostrar a todos vocês." E antes que alguém pudesse impedi-lo, mergulhou na água e começou a nadar. Mergulhei também e saímos os dois nadando.
— Mas você não sabe nadar!
— É um sonho, Amir agha — disse Hassan rindo. — A gente pode fazer qualquer coisa. Seja como for, todo mundo começou a gritar: "Saiam daí! Saiam daí!", mas nós continuamos a nadar na água fria. Chegamos sãos e salvos ao meio do lago e paramos.
Viramos na direção da margem e acenamos para as pessoas que estavam paradas lá.
Pareciam formiguinhas, mas podíamos ouvir os seus aplausos. Agora estavam vendo.
Não tinha monstro nenhum ali, só água. Depois disso, mudaram o nome do lago, que passou a se chamar "Lago de Amir e Hassan, sultões de Cabul", e podíamos cobrar das pessoas que quisessem ir nadar lá.
— E o que isso significa? — perguntei eu.
Ele passou geléia no meu naan e botou em um prato.
— Sei lá... Tinha esperanças que você me explicasse.
— Ora, é um sonho besta. Não acontece nada...
— O pai diz que os sonhos sempre querem dizer alguma coisa. [...]




De repente, me deu vontade de desistir. Pegar as minhas coisas e ir embora para casa. O que é que estava pensando? Por que estava me metendo nessa enrascada, se já sabia qual seria o resultado? Baba estava lá em cima do telhado, olhando para mim.
Sentia o seu olhar no meu corpo como a gente sente o calor do sol ardente. Ia ser um fracasso estrondoso, mesmo para alguém como eu...
— Não sei se estou a fim de empinar pipa hoje — disse. — Está um dia lindo — retrucou Hassan.
Passei o peso do corpo de um pé para o outro. Tentei desviar os olhos do telhado lá de casa.
— Não sei, não. Talvez seja melhor voltar.
Então, ele deu um passo na minha direção e, baixinho, disse uma coisa que me deixou um pouco assustado.
— Não se esqueça, Amir agha. Não tem monstro nenhum; só um lindo dia.
Como eu podia ser assim tão transparente para ele quando, pelo menos em cinqüenta por cento das vezes, não fazia a menor idéia do que estaria passando pela sua cabeça? E era eu que ia ao colégio. Era eu que sabia ler e escrever. Era eu o inteligente. Hassan não era capaz de ler nem um livro de primeira série, mas podia me ler com a maior facilidade. Era um tanto perturbador, mas também um pouco reconfortante ter alguém que sempre sabia do que você estava precisando.
— Monstro nenhum... — repeti, sentindo-me um pouco melhor para minha própria surpresa.
— Monstro nenhum — disse ele sorrindo.
— Tem certeza?
Ele fechou os olhos e fez que sim com a cabeça. Olhei para aquelas crianças correndo pela rua, atirando bolas de neve.
— O dia está lindo, não está?
— Vamos lá? — indagou ele.
Ocorreu-me que talvez Hassan tivesse inventado aquele sonho. Seria possível?
Decidi que não. Hassan não era tão esperto assim. Eu não era tão esperto assim. Mas, inventado ou não, aquele sonho idiota tinha diminuído um pouco a minha ansiedade.
Talvez devesse tirar a camisa e nadar no lago. Por que não?"


"O caçador de pipas" - Khaled Hosseini

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